Há muito que o Natal deixou de ser uma festa religiosa.
No seu aspecto positivo , virou festa de congraçamento , sobretudo no seio da
família , é a data em que todos voltam a comer juntos , ao menos peru e uma
rabanada. No aspecto negativo , é o grande festim do consumo , presidido por
esse chato e mercadológico "Bom Velhinho" , que seria tolerável num
filme de Frank Capra. É uma pena . Porque o Natal , mesmo sem qualquer
conotação religiosa , sem qualquer compromisso confessional, lembra uma antiga
e inarredável aspiração humana : a de um Deus entre nós , com a nossa carne . E
passa despercebido a beleza daquilo que Renan considerou "o mais belo
drama pastoril da humanidade". Independentemente do dogma e da fé , é
comovente a história daquela judiazinha de 15 anos que aceitou sem espanto o anúncio
do anjo de que geraria um Deus. Daquele carpinteiro que de repente , sem aviso
prévio , foi comunidade de que sua mulher geraria um Deus - e se tornou
guardião da mulher e do menino. E os pastores que velavam na imensa noite do
deserto viram falanges de anjos dando glória a Deus nas alturas e receberam o
convite para ir ver o menino. E foram. O evangelista usa o verbo exato :
"transeamus", vamos até Belém. Não adianta receber a mensagem e
continuar na mesma. Ir é preciso. E tudo se passou no meio de um grande silêncio,
"dum medium silentium". Somente no silêncio há espaço e tempo para
ouvir a mensagem , para realizar o trânsito em direção ao novo , ao que acaba
de ser revelado. E é nesse silêncio que
curto o meu Natal, Natal ainda pagão , mas com pena de continuar pagão no meio
de tanta luz que inundou a Lagoa. Espero a noite ir alta , quando todos estão
dormindo profundamente. Não ouço nenhuma voz , não vejo nenhum anjo no céu.
Mesmo assim , espero.
Carlos Heitor Cony. Reproduzido do Jornal Folha
de S.Paulo, São Paulo, 25 dez. 1996. Fornecido pela Agência Folha.