Notícias de possíveis bebês clonados esquentam
o debate sobre os riscos e promessas da genética , uma ciência que faz sonhar e
temer. - Por Flávio Lobo.
Numa possível visão do futuro , em breve , a
divisão das pessoas em meras classes sociais será apenas uma doce lembrança. No
lugar delas haverá , no mínimo , três grandes grupos : os super-humanos , os
infra-humanos e , em número cada vez menor , os "só humanos". A
separá-los , não apenas diferenças socioeconômicas ou culturais , mas
características biológicas tão evidentes e intransponíveis quanto as que
diferenciam um pequinês de um dobermann (ambas raças caninas
"fabricadas" pelo homem). Seremos uma sociedade repleta de seres
humanoides (os "infra") incompletos , limitados , obedientes ou
vegetativos , criados com a única finalidade de servir , como escravos ou
fornecedores de órgãos , tecidos e células , a seus senhores (os
"super"). Entre os dois extremos , uma nova "classe média"
composta de pessoas como você e eu, ávidos por uma possível mas improvável
promoção à casta superior e sob a constante ameaça de rebaixamento ao nível
subumano. Os seres humanos "tradicionais" ou "orgânicos"
(como os alimentos não transgênicos e sem agrotóxicos) entraram em processo de
extinção , contaminados por características genéticas decorrentes de
manipulação , adquiridas através de terapias e medicamentos gênicos e pela
inevitável miscigenação entre os três grupos biossociais. Como não há progresso
científico sem acidentes de percurso , monstros e aberrações vão surgir em
quantidades crescentes. No início , eles serão gerados e destruídos ou
confinados nos laboratórios, mas , com o tempo , ganharão as ruas e acabarão
por contaminar toda a humanidade ou "pós-humanidade" com seus
defeitos e mutações genéticas incontroláveis. Outros enxergam um cenário futuro
completamente diferente. Uma humanidade livre de doenças e defeitos genéticos ,
composta por pessoas orgânica e psicologicamente equilibradas que viverão cada
vez mais e melhor. Um mundo tão harmônico e aprazível que até as mais graves
lesões e mutilações causadas por acidentes serão facilmente remediadas por meio
da substituição de partes do corpo sem risco algum de rejeição imunológica ou
de falta de estoque. Benefícios estes que seriam estendidos a parcelas cada vez
maiores da população do planeta , como a luz elétrica e o telefone. O inferno e
o paraíso geneticamente fabricados : duas visões delirantes ? Provavelmente. Mas
que são frequentemente evocadas ou sugeridas no debate mundial sobre as
oportunidades e os riscos da ciência genética.
Carta Capital . São Paulo . Confiança , n. 223
, 15 Jan. 2003.