Saiba Mais

Translate

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Caçada - Literatura


O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível , aguçando os dentes uns nos outros , rugindo de fúria e vingança : de dois saltos aproximou-se novamente. Era uma luta de morte a que ia se travar ; o índio o sabia , esperou tranquilamente , como  da primeira vez ; a inquietação que sentira  um momento de que a presa lhe escapasse , desaparecera : estava satisfeito. Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil , cada um com as suas armas , cada um com a consciência de sua força e de sua coragem , consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas. O tigre desta vez não se demorou ; apenas se achou a coisa de quinze do inimigo , retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha , cortada pelo raio. Foi cair sobre o índio , apoiado nas largas partes de detrás , com corpo direito , as garras estendidas para degolar a sua vítima , e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.  A velocidade deste salto monstruoso foi tal que , no mesmo instante em que viram brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada , já a fera tocava o chão com as patas. Mas tinha em frente um inimigo digno dela , pela força e agilidade. Como a princípio , o índio havia dobrado um pouco os joelhos , e segurava na esquerda a longa forquilha , sua única defesa ; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançava , curvou-se ainda mais , e fugindo com o corpo apresentou o gancho . A fera , caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo , sentiu o forcado cerrar-lhe o colo e vacilou. Então , o selvagem , distendeu-se com a flexibilidade de cascavel ao lançar o bote : ficando os pés e as costas no tronco , arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça , que subjugada , prostrada de costas , com a cabeça presa ao chão pelo gancho debatia-se contra o seu vencedor , procurando debalde alcançá-lo com as garras.  Esta luta durou minutos ; o índio , com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça , e o corpo inclinado sobre a forquilha , mantinha assim imóvel a fera , que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem. Quando o animal , quase asfixiado pela estrangulação , já não fazia senão uma fraca resistência , o selvagem , segurando sempre a forquilha , meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum que tinha enrolada à cintura em muitas voltas. Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra ; depois fez o mesmo às pernas , e acabou por amarrar as duas mandíbulas , de modo que a onça não pudesse abrir a boca.

-José de Alencar . O guarani. São Paulo , Cultrix , 1968.

Anuncios