¤ Narrador-Personagem
O narrador-personagem conta na 1¤. pessoa a história da qual participa também como personagem. Como se percebe , ele tem uma relação íntima com os outros elementos da narrativa. Sua maneira de contar é fortemente marcada por características subjetivas, emocionais. Por um lado, essa proximidade com o mundo narrado revela dimensões que um narrador de fora não poderia conhecer ; por outro lado , essa proximidade faz com que a narrativa seja profundamente parcial , impregnada pelo ponto de vista do narrador . Um exemplo:
"Estremeci. Por minha causa o pobre ia ficar às escuras , receber um pires de feijão por dia , sem conseguir estirar-se no cubículo molhado e exíguo , de um metro e pouco. Achava-me na obrigação de responsabilizar-me , dizer no homem de beiço rachado que a culpa era minha : sem as pilhérias bestas , não teria havido o riso. [...] Iria denunciar-me ? Ou deixaria outro ser punido em meu lugar? Na verdade a minha falta não era grande: apenas me distraíra a lançar observações a respeito da eloquência do padre e da literatura da citação, usada sem propósito . O infeliz tivera o desplante de zombar disso claramente, ás barbas da autoridade . Pior para ele. Assim falava no íntimo, e ainda me conservara indeciso , a condernar-me , a inocentar-me. O rapaz fora leviano por me haver escutado. Evidente. A culpa era minha. Teria coragem de revelar-me , tentar eximi-lo? Uma ideia fúnebre me ocorreu : desgraçada situação em que me achava encerrar-me por gesto na ratoeira medonha era um suicídio. O meu companheiro , homem robusto, poderia aguentar-se ali uma semana ; depois recobraria as forças. Não me seria possível resistir. A perna entaguida, as dores no pé da barriga, torpor no estômago vazio, a tosse , arrepios de febre tornavam irrealizável a honestidade. É estranho um indivíduo perceber que não tem meio de ser digno.
-Gracialiano Ramos. Memórias do Cárcere. Rio/São Paulo, Record, 1996.