A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas , e todo o fim de ano, durante seis , faria os exames , ao fim dos quais seria doutor! Ah! Seria doutor! Rasgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente , cruciante e onímodo de minha cor ... Nas dobras do pergaminho da carta , traria presa a consideração de toda a gente. Segundo do respeito à minha majestade de homem , andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia , não hesitaria , livremente poderia falar , dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. O flanco, que a minha pessoa , na batalha da vida , oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus , ficaria mascarado , disfarçado... Ah! Doutor ! Doutor! ... Era mágico o título , tinha poderes e alcances múltiplos , vários , polifórmicos... Era um pallium, era alguma cousa como clâmide sagrada , tecida com um fio tênue e quase imponderável , mas a cujo encontro os elementos , os maus olhares , os exorcismos se quebravam. De posse dela , as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo , não se animariam a tocar-me nas roupas , no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer , e gastaria os fortes , os inexoráveis , com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado , de anel no dedo , sobrecasaca e cartola , inflado e grosso , como um sapo-itanha antes de ferir a martelada à beira do brejo ; andar assim pelas ruas , pelas praças , pelas estradas , pelas salas , recebendo cumprimentos: Doutor , como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano !...
¤Lima Barreto. In: Eliane Vasconcelos (Org.). Prosa seleta. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2001 . P. 126.