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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Nossa Relação Com O Passado


"Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento , porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório . Então , marcou-as com o nome respectivo , de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método , e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado . Com um pincel cheio de tinta , marcou cada coisa com o seu nome: mesa , cadeira , relógio , porta , parede , camada , panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas : vaca , cabrito, porco , galinha , aipim , taioba , bananeira. Pouco a pouco , estudando as infinitas possibilidades do esquecimento , percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições , mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da varanda era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento. Esta é a vaca , tem-se de ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e é preciso ferver para misturá-lo com o café e fazer café com leite. Assim , continuaram vivendo uma realidade escorregadia momentaneamente capturada pelas palavras , mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita."

- Márquez , Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro : Record, 1994 , p. 47-48.

Nesse trecho do romance "Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) , os habitantes da aldeia fictícia de Macondo estão "dispostos a lutar contra o esquecimento" , causado por uma doença da insônia que levava progressivamente à perda da memória. Poderíamos então imaginar o futuro dessa comunidade à medida que a perda de memória é agravada: as pessoas simplesmente parariam de agir , pois não saberiam o que fazer.  A palavra memória faz parte de nosso dia a dia respeito a algo que em geral temos como positivo. Por meio da memória , somos capazes de evocar lembranças necessárias para orientar nossas ações. Graças a ela , podemos nos lembrar de compromissos assumidos , favores prestados , contas a pagar , piadas que ouvimos alguém contar , além de uma série de outras informações. Quando temos dificuldade em nos lembrar das coisas , dizemos que a memória está "fraca" , que na maioria das vezes consideramos algo negativo . Tanto assim  que uma das coisas que mais assustam as pessoas é o mal de Alzheimer , que causa a perda progressiva da memoria. Nossa relação com o passado pode se dar não só no âmbito individual como também no coletivo. Assim como a perda da memória apavora José Arcadio Buendía , personagem do romance de García Márquez , ela também representa uma ameaça à comunidade de Macondo. Isso acontece porque as sociedades desenvolvem modos coletivos de se relacionar com o passado. No Ocidente , podemos identificar duas formas principais de representação do passado coletivo : a memória (social ou coletiva) e a história. A primeira consiste em uma manifestação relativamente  espontânea da coletividade, que busca no passado elementos para compreender a si mesma no presente. A história , por sua vez , se apresenta como uma representação formal do passado com base em uma análise crítica de suas fontes. Em breve , conheceremos algumas das inúmeras reflexões que a tradição filosófica nos legou sobre essas formas de lidarmos com a passagem do tempo e nos relacionarmos com o passado. 

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