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sábado, 11 de abril de 2020

Do Pessimismo à Filosofia Da Existência


De acordo com o que foi estudado até o momento , poderíamos supor que uma atitude de pessimismo e ao mesmo tempo de negação da existência de Deus deveria conduzir ao niilismo , ou seja , à negação de todos os valores. Mas , inversamente a essas expectativas , muitos filósofos pensam justamente o contrário : o pessimismo , o reconhecimento do absurdo da existência humana, seria o primeiro passo para que possamos viver uma vida verdadeiramente autêntica.  Esse é , por exemplo , o ponto de vista adotado pelo filósofo alemão Martin Heidegger , que viveu no século XX. Para esse pensador , o ser humano é um ente fundamentalmente marcado pela sua existência , tanto que  , para se referir ao homem , ele utiliza o termo Dasein , que pode ser traduzido como "ser aí" . Isso significa que a essência do ser humano , ou seja , o que ele é , não é dada de antemão, mas se define a partir das possibilidades de ser que se realizam em sua  existência. Dessas possibilidades , a mais primordial , e ao mesmo tempo caracterizada por uma indeterminação angustiante , é a morte . Além disso , o ser humano se encontra jogado em um mundo que não escolheu e no qual não pode permanecer se quiser , pois a morte pode acontecer a qualquer momento. Diante dessa condição , o ser humano pode fugir da angústia, distraindo-se com as preocupações do mundo e vivendo , segundo Heidegger , uma vida inautêntica , ou então pode assumir a angústia resultante da consciência da morte como algo certo , mas indeterminado , e se lançar ao futuro em uma vida autêntica. O pensamento de Albert Camus , um escritor francês também no século XX , se assemelha em muitos aspectos ao de Heidegger. O pessimismo  de Camus pode ser notado com clareza em uma passagem de "O Estrangeiro" , um romance de sua autoria lançado em 1942. O livro conta a história de Meaursalt , personagem acusada de assassinato e condenada à morte . Enquanto aguardava a possibilidade  de um recurso para que fosse feito outro julgamento , Mersault pensava sobre como poderia ser sua vida depois da prisão:
"Começava sempre pela suposição mais pessimista: meu recurso seria rejeitado . 'Pois bem , então morrerei". Mais cedo do que outros , evidentemente. Mas todos sabem que a vida não vale a pena ser vivida . No fundo não ignorava que tanto faz morrer aos trinta ou aos setenta anos , pois , em qualquer dos casos , outros homens e outras mulheres viverão , e isso durante milhares de anos. Afinal , nada mais claro . Hoje , ou daqui a vinte anos, era sempre eu quem morria. Nesse momento , o que me perturbava um pouco no meu raciocínio era esse frêmito terrível que sentia em mim ao pensar nesses vinte anos que faltavam para viver. O que tenha a fazer era sufocar essa sensação , imaginando  o que seriam os maus pensamentos daqui a vinte anos , quando , apesar de tudo , chegasse a hora. A partir do momento em que se morre, é evidente que não importa quando e como."

- Camus, Albert. O Estrangeiro . Rio de Janeiro: Record , 2001. p. 117-118. 

Para Camus , a religião não pode dar sentido à existência, pois não passaria de uma "trapaça dos que vivem não para a própria vida , mas para alguma grande ideia que a ultrapassa ou a sublima , lhe dá um sentido e a atraiçoa". Mas , ao mesmo tempo , ele condena o suicídio . Só resta , portanto , aceitar e viver o absurdo da existência humana. Para esclarecer seu ponto de vista, ele lança mão do mito de Sísifo, personagem da mitologia grega:

"Os deveres condenaram Sístio a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha , de onde tornava a cair por seu próprio peso. Pensaram , com certa razão , que não há castigo mas terrível que o trabalho inútil e sem esperança."
- Camus , Albert. O mito de Sísifo . 11. Ed. Rio de Janeiro: Record , 2014.p.137.

Segundo Camus , cada um de nós  , com suas atividades, é como Sísifo . Quando nos tornamos conscientes de que nossa vida é sem sentido , nos vêm os sentimentos de revolta e de desprezo que nos tornam verdadeiramente humanos. Outro exemplo de como o pessimismo pode levar a um encontro da pessoa com sua própria humanidade são as reflexões do filósofos  francês Jean-Paul Sartre, que , tal como Heidegger e Camus , viveu no século XX. Grande parte das ideias de Sartre ganhou expressão literária na forma de romances ou de peças de teatro. Em um romance intitulado "A Náusea" , por exemplo, Sartre se dá conta de que a vida é um absurdo e passa a sentir aversão pelo ser humano . Há uma passagem do livro em que o  historiador está em um café com um amigo e uma mosca pousa sobre a mesa. Com o indicador ele esmaga o inseto , que solta da barriga suas tripas brancas, e Roquentin pensa: 'Livrei-a de sua existência'. E, em seguida, exclama: 'Era um favor a lhe prestar'. A existência da mosca o incomodava porque era somente uma mera existência . Tal como um inseto ou uma pedra , muitos seres humanos simplesmente existem , mais nada , e é isso que causa a Roquentin a sensação de náusea , que dá título ao romance. Em um pequeno texto intitulado 'O Existencialismo é um humanismo' , Sartre expressa mais claramente seu pensamento , afirmando que  a existência precede a essência. Isso significa que a essência do ser humano, aquilo que uma pessoa é , não é algo predeterminado , como é o caso de uma mosca ou de uma pedra. Pelo contrário , no caso do ser humano , primeiro existimos e depois adquirimos uma essência , ou seja , nos tornamos o que somos. E , como somos livres , são nossas livres escolhas que definem essa essência que se constrói no tempo:

"O existencialismo ateu , que eu represento , é mais coerente. Afirma que , se Deus não existe , há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência , um ser que existe antes do poder ser definido por qualquer conceito : este ser é o homem , ou como diz Heidegger, a realidade humana . O que significa , aqui dizer que a existência precede a essência? SIGNIFICA que , em primeira instância , o homem existe , encontra a si mesmo , surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe , só não é passível de uma definição porque , de início , não é nada : só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim , não existe natureza humano , já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão somente , não apenas como ele se concebe , mas também como ele se quer ; como ele se concebe após a existência , como ele se quer após esse impulso para a existência . O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam . Porém , nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou da mesa . Pois queremos dizer que o homem , antes de mais nada , existe , ou seja , o homem é , antes de mais nada , aquilo que se projeta num futuro , e que tem consciência de estar se projetando no futuro."

- Sartre, Jean-Paul . O existencialismo é um humanismo . 

No mesmo texto , Sartre nos dá um exemplo de como a essência de uma pessoa se constitui pela liberdade. Durante a Segunda Guerra Mundial , um jovem confidenciou-lhe um dilema: queria se alistar nas Força Francesas Livres , mas sua mãe dependia dele , e ele não quera deixá-la desamparada. O que o jovem viria a ser- autêntico patriota ou bom filho , mas não ambos - dependia unicamente de sua própria escolha. Por isso é que , segundo Sartre , vivemos em uma situação de desamparo buscando o sentido da vida , já que somos nós mesmos que escolhemos o "nosso ser". Embora pensadores existencialistas como Camus e Sartre partam de uma concepção pessimista da existência humana , desenvolvem concepções de caráter humanista , isto é , de valorização do ser humano. Podemos dizer também que a reflexão existencialista recusa a crença em Deus , pois considera que não há um fundamento único que confira sentido à vida humana . Pelo contrário , cada um de nós constrói ao longo da própria existência uma essência que dê sentido à própria vida. Assim , voltando aos modelos do quebra-cabeça e do mosaico , para os existencialistas , a solução para a questão sobre o sentido da vida se aproxima do modelo do mosaico. A vida tem o sentido que cada um de nós lhe atribui.

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