"Relendo [...] percebi que aprender alguma coisa desta língua dos tupiniquins pode ser de muita valia caso o senhor cometa um dia o desatino de vir a essas terras da gentilidade. Primeiramente devo dizer que este idioma não possui os sons de "F" , "L" e "R" forte, pelo o que há quem diga que os tupiniquins não têm fé , nem lei nem rei , o rei que é grande truanice , pois em Portugal temos o "F" e há mulheres que não são fieis , temos o "L" e há súditos que não são leais , e lemos o "R" forte , mas são poucos os que agem pela razão. Além do nosso "i" natural , falam um outro que soa como "ig". Pronunciam consoantes estranhas como "mb" , é este o caso da cobra , a que chamam de um boi. Por essas qualidades , há algumas palavras que não conseguem dizer , como Bacharel , que falam Bacharé, e o nome de nosso país , que pronunciam como Portugal. Os tupiniquins apreciam muito os que aprendem a falar como eles e têm por grande homem aquele que conhece mais palavras."
Torero , José Roberto ; Pimenta , Marcus Aurelius. Terra Papagalli : narração para preguiçosos leitores da luxuriosa , irada , soberba , invejável , cobiçada e gulosa história do primeiro rei do Brasil . Rio de Janeiro : Objetiva, 2000. p. 67.
No texto acima, extraído de um romance cujo cenário é o início da colonização do Brasil pelos portugueses , os autores fazem uma paródia do que afirmou o cronista português Pero de Magalhães Gândavo (c. 1540-C.1580) NA OBRA Tratado da Terra do Brasil: "[...] não se acha nela [na língua indígena do litoral] F, nem L , nem R , coisa digna de espanto , porque assim não têm Fé , nem Lei , nem Rei; e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente " (Brasil. Ministério da Cultura/Fundação Biblioteca Nacional, s. d.). Tratava-se de uma observação etnocêntrica sobre o modo de vida ameríndio que justificava a dominação europeia sobre os indígenas. É interessante observar que a paródia dessa passagem fala obre um aspecto da linguagem que provavelmente não passou pela cabeça do cronista português : só sabemos o significado das palavras porque existe o diferente. Por exemplo , sabemos o que significa a palavra fidelidade por sua oposição a outras palavras, como traição , infidelidade , deslealdade , etc. Assim, os portugueses só podem saber o que é Fé , Lei e Rei porque concebem a falta de fé , a falta de leis e a ausência de um rei. Essa concepção de que significado das palavras é fundado na diferença foi proposta originalmente por Ferdinand de Saussure . Insatisfeito com os resultados da abordagem linguística do fim do século XIX. que buscava o significado da palavra na etimologia , ou seja , na origem e na formação da própria palavra , o linguista suíço procurou pensar na linguagem como um sistema estruturado de signos.