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sábado, 16 de maio de 2020

Beleza e Subjetividade


Conforme vimos , a concepção platônica postula que a beleza é objetiva : ou o objeto participa do ideal transcendente e , portanto , é belo , ou não participa e não é belo. Os níveis intermediários entre a beleza e a feiura representariam diferentes graus de participação das coisas em uma forma que existe em si e por si mesma em uma esfera separada do mundo sensível . Para reconhecer a beleza , nessa perspectiva , seria necessário recorrer à autoridade dos filósofos , ou seja , daqueles que , dotados de uma disposição natural ao conhecimento da verdade , fossem capazes de avaliar com mais competência o quanto cada coisa participaria do puro ideal de beleza. No pensamento moderno , porém , o argumento platônico se viu irremediavelmente fragilizado por uma mudança no modo como se concebia a natureza humana. Numa concepção estética moderna , portanto , não existe ponto de vista objetivo com base no qual alguém possa dizer que algo é mais belo ou menos belo. Assim , a diversidade de opiniões comprova o fato de que a beleza não é objetiva , mas subjetiva . É esse o ponto de vista do filósofo inglês David Hume (1711-1776) , o ensaio intitulado "Do padrão do gosto":

"É natural que procuremos encontrar um padrão de gosto , uma regra capaz de conciliar as diversas opiniões dos homens , pelo menos uma decisão reconhecida , aprovando uma opinião e condenando outra. Há uma espécie de filosofia que impede toda esperança de sucesso nessa tentativa , concluindo pela impossibilidade de se vir jamais a atingir qualquer padrão de gosto. Diz ela que há uma diferença muito grande entre o julgamento e o sentimento. O sentimento está sempre certo - porque o sentimento não tem outro referente senão ele mesmo , e é sempre real , quando alguém tem consciência dele. [...] A beleza não é uma qualidade das próprias coisas , existe apenas no espírito que as contempla , e cada espírito percebe uma beleza diferente. É possível até uma pessoa encontrar deformidade onde uma outra vê apenas beleza , e todo indivíduo deve aquiescer a seu própria sentimento, sem ter a pretensão de regular o dos outros. Procurar estabelecer uma beleza real , ou uma deformidade real , é uma investigação tão infrutífera como procurar determinar uma doçura real ou um amargor real. Conforme a disposição dos órgãos do corpo , o mesmo objeto tanto pode ser doce como amargo , e o provérbio popular afirma com muita razão que gostos  não se discutem. É muito natural , e mesmo absolutamente necessário , aplicar este axioma ao gosto mental , além do gosto corpóreo , e assim o senso comum que tão frequentemente diverge da filosofia , sobretudo da filosofia cética , ao menos num caso está de acordo em proferir idêntica decisão."

-Hume , David. Do Padrão do Gosto. São Paulo: Nova Cultural , 1999. p. 335-336 (coleção Os Pensadores).

Se concordamos com a afirmação de Hume, de que gosto é pessoal que a apreciação estética é subjetiva , como então explicar o fato de que algumas obras sejam reconhecidas pelo público como geniais e outras consideradas medíocres? O escritor brasileiro Ariano Suassuna (1927-2014) , durante uma palestra no Tribunal Superior do Trabalho , no dia 18 de abril de 2012, reclamou de uma crítica publicada em um jornal de grande circulação que qualificada como "genial" determinado guitarrista de música popular . "Olhar , eu sou um escritor brasileiro , e a língua portuguesa é meu material de trabalho", disse Suassuna . "Se eu gasto um adjetivo como 'genial' [com esse guitarrista], o que é que eu vou dizer de Beethoven? Tem que inventar outra palavra!" . Por mais que aceitemos que o gosto é uma questão pessoal , a indignação de Suassuna parece conter um grão de verdade: se a beleza fosse completamente subjetiva , não haveria juízos coletivos e não haveria como comparar "grandes" e "pequenas" obras de arte. Machado de Assis (1839-1908) e Guimarães Rosa (1908-1967) não seriam nem mais nem menos geniais que seus mais obscuros imitadores. Trabalhos de pintores consagrados , como Victor Meirelles (1832-1903) , Tarsila do Amaral (1886-1973) e Candido Portinari (1903-1962)  poderiam valer tanto quanto rabiscos infantis , dependendo do ponto de vista de que os avaliasse. 

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